11 outubro, 2005

O mapa gaúcho da arte

Qual a posição do Rio Grande do Sul no panorama brasileiro de arte contemporânea? Como estão os museus e instituições locais? E a produção artística? APLAUSO reuniu artistas e teóricos para discutir essas e outras questões no debate que finaliza a série sobre a arte de hoje
por FERNANDA ALBUQUERQUE
Como o Rio Grande do Sul se situa no panorama nacional de arte contemporânea?

Vera Chaves Barcellos: Mal, eu diria. Em comparação com décadas passadas, a gente piorou.
Blanca Brites: Tu te referes à situação institucional ou aos artistas?
Vera: Me refiro principalmente à carência de infra-estrutura. Não posso julgar a produção, porque às vezes os artistas estão desenvolvendo trabalhos interessantes, mas não têm como mostrá-los. O que a gente vê no Estado é que existem ilhas: o Torreão, o Santander. São espaços que desenvolvem trabalhos interessantes. Mas há instituições que deveriam estar funcionando e não estão, como a Casa de Cultura Mario Quintana e o Margs. Também existe um problema com as galerias. Elas não arriscam. De vez em quando, algumas até trabalham com arte contemporânea, mas em geral investem mais em arte moderna, que é o que garante a venda.
Jailton Moreira: Discordo de ti. Em relação ao resto do país, me parece que o Rio Grande do Sul está onde sempre esteve: no terceiro, quarto ou quinto lugar, dividindo essas posições com Minas Gerais e Pernambuco. Em relação a esses dois centros, não vejo o Estado melhor ou pior do que sempre foi. Agora, em relação a décadas passadas, concordo que já tivemos situações melhores. A CCMQ, por exemplo, não sabe mais do que se trata. O Margs, que teve bons momentos há alguns anos, também está entregue. A parte da prefeitura está complicada. O Santander ainda não conseguiu definir um perfil de programação. Este ano, por exemplo, só fez uma exposição. Claro que há ganhos. O Instituto de Artes se solidificou, a Bienal se estabeleceu...
Blanca: Será que essa mudança não tem a ver com a própria postura dos artistas? Me parece que as gerações atuais não estão tão preocupadas em se impor e exigir espaço, pelo menos não os tradicionais. A divulgação da produção tem acontecido de outra maneira.
Vera: De qualquer forma, há poucos espaços expositivos. Ou melhor: eles existem, mas estão mal administrados.
Como os artistas têm reagido a essa carência?
Jailton: Quando determinadas instituições são administradas de forma equivocada, os primeiros a deixar esses espaços são os artistas, que migram para outros locais ou simplesmente se recolhem, aguardam, pois sabem que essas questões são cíclicas. É uma espécie de sabedoria.
Blanca: Mas esse recolhimento em relação às instituições não significa que os artistas não estejam produzindo. O que acontece é que a produção tem sido menos divulgada.
Vera: O problema é que, se a produção não tem onde ser veiculada, é preciso ser muito heróico para continuar produzindo.
Blanca: Mas a questão não está ligada só a ter ou não ter locais expositivos. Tenho a impressão de que esse tipo de exibição mais convencional não tem interessado tanto à geração mais jovem em função das próprias propostas artísticas.
Denise Gadelha: Os artistas estão apostando em outras formas de visibilidade. Estão se organizando de outras maneiras para produzir e veicular seus trabalhos. Por isso não têm exigido esses espaços mais tradicionais. Existem artistas que formam grupos e vão atuar nas ruas, outros fazem fanzines, editam revistas. Tem o Projeto Areal, por exemplo, que aposta num outro tipo de organização.
Blanca: Só que essas produções acabam tendo um público restrito. Ficam fechadas a pequenos círculos.
Jailton: Mas alguma vez foi diferente?
Vera: Foi. Quando o Gaudêncio Fidelis fundou o MAC, em 1992, houve uns dois ou três anos em que a produção jovem pôde aparecer. Vimos muita coisa interessante surgir naquela época.
Eduardo Veras: É verdade. Mas talvez os jovens artistas de hoje não estejam procurando os espaços tradicionais, porque a própria produção não exija isso. É claro que essa produção não está desligada do sistema de arte – instituições, galerias etc –, mas parece que ela encontra formas de sobrevivência que têm uma vitalidade própria e que não são tão dependentes do sistema convencional. Isso talvez seja uma novidade.
Denise: Mesmo aquela produção que demanda esse tipo de espaço não necessariamente depende dos locais e de iniciativas públicas daqui do Estado para ser veiculada. Hoje está muito fácil transitar em outros locais do país. Existe uma gama muito grande de ofertas.
Então a produção está circulando?
Denise: Muito. Há várias instituições investindo em projetos que dão visibilidade à produção jovem: Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, Funarte, Prêmio Chamex, Fundação Joaquim Nabuco, Bolsa Pampulha, Bolsa Iberê...
Jailton: É mais do que sempre existiu. A possibilidade de permanecer em Porto Alegre e estar conectado com o resto do país é uma novidade. Quando comecei, a única alternativa era se mudar para São Paulo.
Blanca: Mas essa possibilidade começa nos anos 80, quando acontece um certo boom do mercado de arte local, que vai permitir que a Vera fique aqui, a Karin Lambrecht, a Lia Menna Barreto...
Jailton: Uma coisa é a Karin ou a Lia, que conquistaram uma relação de mercado em São Paulo, poderem circular lá. Outra coisa é a Denise, que está iniciando um trabalho, estar totalmente conectada com o resto do Brasil.
Vera: Isso é diferente mesmo. Mas houve momentos na arte brasileira em que essa situação também aconteceu. Nos anos 60, o Walter Zanini fez um trabalho importante na direção do MAC de São Paulo. Ele era extremamente atento aos focos fora do centro.
Jailton: Mas era uma relação que acontecia do centro para as bordas. A diferença hoje é que existe um intercâmbio muito grande entre as bordas, de região para região, sem que as relações precisem ser mediadas por São Paulo ou Rio de Janeiro.
Blanca: As relações passam a acontecer diretamente entre os artistas. Se nos anos 80 esses intercâmbios ainda estavam vinculados a uma questão de mercado, hoje eles acontecem de forma mais independente, sem intermediários.
Jailton: Mas ainda existe no artista jovem uma ânsia por um paternalismo, que antes era exercido pelo mercado e hoje é exercido pela instituição. Antes, o sonho era assinar um contrato com o Thomas Cohn. Hoje, é ter uma bolsa.
Vera: A arte sempre precisou de paternalismo. Ou tu trabalhas numa fábrica oito horas por dia, ou tu és artista. E aí alguém vai ter de pagar as contas.
Blanca: A questão da sobrevivência é problemática. Como é que o artista vai viver?
Jailton: Ele pode criar outras estratégias. Minha experiência com a criação do Torreão foi tentar encontrar uma possibilidade que não é nem trabalhar numa fábrica, nem receber uma bolsa, mas inventar uma estratégia de sobrevivência. Os anos 90 foram marcados pela proliferação desses espaços que não são nem instituição, nem galeria. São alternativas criadas pelos próprios artistas para suprir determinadas necessidades.
A proliferação desse tipo de iniciativa é reflexo da ineficiência institucional que vocês apontaram?
Jailton: Em parte sim, mas não é só isso. A Vera deu o exemplo da atuação do Gaudêncio junto ao MAC, que foi muito positiva. Isso porque o Instituto Estadual de Artes Visuais funcionava bem naquela época. Isso não aconteceu mais. Talvez a ineficiência do IEAV esteja embutida no preço que a gente paga pela Bienal.
Vera: Como assim? Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tu achas que o evento exaure os recursos para as artes, é isso?
Jailton: Não é isso, mas acho que a Bienal acaba funcionando como um biombo para a incompetência. É como se as pessoas ficassem satisfeitas com o simples fato de a Bienal existir e se sentissem desobrigadas de produzir outros eventos, investir em outras iniciativas. A Bienal, em si, não tem culpa nenhuma.
Eduardo: Tendo a concordar com o Jailton. Mas acho que o problema da ineficiência está mais ligado ao fato de as instituições estarem sujeitas às mudanças de governo e se manterem a reboque disso.
Sobre a Bienal, uma das críticas recorrentes ao evento é o fato de ele funcionar como uma espécie de disco voador, que aterrissa na cidade de dois em dois anos e depois vai embora. Como vocês vêem essa questão?
Blanca: O caráter esporádico é uma característica de todas as Bienais. Talvez a gente esteja exigindo muito da Bienal do Mercosul ao reclamar da falta de continuidade. É como se a gente quisesse que ela cumprisse o papel do IEAV. É uma responsabilidade que ela não tem de assumir.
Eduardo: Mas a própria Fundação Bienal já assimilou o discurso de que deveria promover atividades nos intervalos entre as exposições.
Vera: Não acho isso tão necessário. E concordo com a Blanca: todas as grandes exposições são assim. Preparar uma mostra do porte da Bienal já é muita coisa. O tempo é muito curto, e a responsabilidade é grande.
Jailton: Concordo com vocês. Não podemos exigir que a Bienal assuma o papel do IEAV. Fazer uma boa mostra já é uma tarefa excelente. Acontece que o evento acaba ficando completamente isolado da cena artística local, exatamente em função da ineficiência do IEAV e de outras instituições públicas. Daí a crítica de que a Bienal seria essa espécie de disco voador.
Vera: O problema da Bienal é o seguinte: a primeira edição foi boa, as três intermediárias mais ou menos, e a quinta tenho esperanças de que será boa também. Acontece que tanto o Paulo Sergio quanto o Frederico Morais, que foi o curador da primeira, praticamente se mudaram para Porto Alegre durante a organização do evento, o que não aconteceu com os outros curadores. Isso faz muita diferença.
Eduardo: Com todas as críticas que se possa fazer a uma ou outra edição, não dá para negar que a Bienal tem exercido um papel importante de formação de público para a arte contemporânea. O repertório que o porto-alegrense tem hoje certamente não é o mesmo de 1997.
Vera: A Bienal tem números de público impressionantes. Agora, se as pessoas realmente se relacionam com o que está exposto, é outra história. O que acontece com essas grandes exposições no Brasil é que elas acabam virando uma espécie de feira. As pessoas visitam a Bienal como se estivessem visitando a Expointer.
Como vocês avaliam a produção gaúcha?
Jailton: Por ter trabalhado em duas edições do Rumos Itaú Cultural, viajei quatro anos pelo Brasil, conhecendo a produção jovem. A partir dessa experiência, me dei conta de algumas particularidades nossas. A primeira é que a gente conversa muito. A produção local é relativamente conectada entre si e bastante reflexiva. Existe bastante diálogo, troca. Muito diferente de outras regiões do país. Isso melhora a sua qualidade. Gera uma certa precisão, uma limpeza de idéias. Outro ponto inegável é a importância do Instituto de Artes da UFRGS e principalmente da Pós-Graduação em Artes Visuais no nosso cenário. O PPGAV tem hoje um reconhecimento nacional e cumpre um papel muito significativo aqui. Existe um lado negativo, que é a prevalência muito forte de um certo tipo de abordagem teórica, o que acaba criando uma espécie de monocromatismo.
Blanca: Esse monocromatismo ainda é reflexo do grupo de professores que criou a pós-graduação. Mas esse grupo está aberto às mudanças que vêm ocorrendo. O quadro de professores está aumentando e com ele as abordagens e os direcionamentos.
Vera: Um dado significativo é que os artistas mais atuantes saem do instituto. E não de oficinas particulares ou do Atelier Livre, por exemplo.
Jailton: Talvez porque a arte contemporânea exija um certo envolvimento com formação e informação. Não dá para pensar em produção de arte contemporânea desconectada de alguma atividade de reflexão. Além do instituto, também destaco a Feevale e a Universidade Federal de Pelotas, que são referências fortes no Estado.
Eduardo: E tem o Torreão, que também está fazendo um trabalho importante de formação.
Blanca: O Torreão cumpre hoje o papel que o Atelier Livre cumpria nos anos 70 e 80. Ele oferece aos alunos do Instituto de Artes um outro tipo de experiência, o que é muito bom. Não dá para ficar numa formação única.
Eduardo: E a Bienal? Ela também não tem um papel na formação dos artistas?
Denise: Tem, mas poderia ter mais. Tudo bem que ela não deva assumir o papel do IEAV, mas, se pensarmos no volume de recursos investido na Bienal, é justo que eles desenvolvam outros projetos entre cada edição. Até para criar um envolvimento maior com o público local. Não só com o grande público, mas principalmente com o especializado, que às vezes é deixado de lado.
Jailton: A Fundação Bienal poderia ter uma atuação semelhante à da Fundação Iberê, promovendo cursos, seminários, palestras. Antes de concluir o museu, eles já tem uma programação intensa. Isso é raro. Normalmente é o prédio que vem em primeiro lugar e só depois se pensa no que botar lá dentro. O que a Fundação Iberê está fazendo é exatamente o contrário.
E o Museu de Arte Contemporânea? Desde o início de 2004, ele está ocupando um dos armazéns do Cais do Porto e de lá para cá vem tentando estabelecer uma programação. Como vocês vêem a atuação do museu?
Vera: É muito difícil julgar a boa vontade das pessoas que estão no MAC. Talvez elas não estejam suficientemente preparadas para os cargos que ocupam, o que não é culpa delas. Há toda uma conjuntura que está completamente equivocada e que precisa ser revista. Não existe um espaço adequado, a equipe é pequena, não há verba. A questão é: não dá para fazer arte sem dinheiro. Quem pode exigir melhorias? Nós, os artistas. Uma associação como a Chico Lisboa deveria atuar exatamente nesses momentos. É para isso que essas organizações existem. E não para fazer exposições dos associados, o que é algo ridículo.
Blanca: A questão do MAC começa pelo espaço. Ele nasceu sem sede e nunca conseguiu conquistar uma. E tem mais: precisamos entender que um museu tem de ter um diretor, ou seja, alguém que gerencie o espaço, e um conselho curatorial ou diretor artístico, que se ocupe da programação. Ninguém é obrigado a entender de finanças e de arte contemporânea.
Vera: Há quem ache a figura do curador antipática, mas ela é extremamente necessária. É o curador quem cria um perfil para os espaços e define uma ótica para as exposições. Essa história de telefonar para o artista, pedir uma obra e ainda dizer que ele mesmo tem de levar e montar o trabalho no museu é uma piada.
Eduardo: Não é só o MAC que tem feito isso. O Margs também. Os nossos museus ainda não desenvolveram a cultura do curador. Não basta ter curadorias isoladas a cada mostra. É preciso criar um conselho curatorial permanente e fazer com que ele se mantenha à revelia das mudanças de governo.
Vera: Antes de concluir, quero fazer uma última colocação: quando disse que a cena contemporânea gaúcha ia mal no início do debate, minha intenção era muito mais fazer uma provocação. Nós, gaúchos, tendemos a um excesso de otimismo, o que não é bom. Quando a gente acha que está tudo muito bem, a gente se acomoda. Não faz nada para melhorar.
Ilustração: Nina Moraes

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